sábado, 19 de setembro de 2009

O SOM DO CORTE

cena do filme "Atonement", 2007

Antes de a imagem ser registrada fotograficamente, antes da primeira exibição do cinematógrafo dos irmãos Lumière, o homem contava histórias, a oralidade era a fonte de imaginação e transporte de informações, era atributo de realidade.


O cinema como se sabe nasceu mudo, contavam-se histórias através de imagens. No decorrer dos anos a tecnologia avançou suficientemente para que o som pudesse completar o processo da narrativa cinematográfica. O uso do som no cinema vai além das falas sincronizadas ou a inserção de uma música adequada a uma determinada cena. Igualmente como todos os elementos que compõem o todo de um filme (roteiro, fotografia, direção de arte e afins) o som é um elemento fundamental para que a história seja contada com eficácia. Em inúmeros casos o espectador nem percebe seu efeito dentro da narrativa, muitas vezes é um sinal de que o som esta em harmonia com os demais componentes fílmicos e em outras revela uma audição que ainda não está educada para as nuances e aspectos específicos da sonoridade fílmica. Essa não educação auditiva dificilmente perceberá o trabalho de um bom design de som.


Em “Desejo e Reparação” (Atonement/2007), direção de Joe Wright, trilha sonora de Dario Marianelli(ganhador do Oscar 2008), o som é um competente exemplo da contribuição sonora para que uma história seja bem contada.


Nos créditos inicias ouve-se o som de uma máquina de escrever, prenúncio do possível assunto a ser tratado no filme. Ainda nos primeiros minutos o mesmo som volta a ser ouvido e comporá a trilha sonora que segue, dando ritmo e forma no caminhar da personagem principal, Briony.


A história do filme é sobre uma escritora, é sobre contar histórias e como funciona a mente de uma contadora de histórias, com um olhar subjetivo que não capta todos os aspectos da realidade e constrói outras verdades a partir deste olhar. Ao longo dos anos foi conferida a visão/ao olhar o status de autenticidade da realidade, no entanto, em “Desejo e Reparação” é justamente a ausência de som em um diálogo que faz com que a realidade seja apreendida de maneira inadequada, apenas a visão das ações dos personagens que foram observados ao longe não apreende toda a verdade sobre a situação assistida.


A cena em questão é fundamental para pontuar como o som contribui na construção desta história. Após ser deixada sozinha em seu quarto com a sua peça de teatro nas mãos a jovem Briony é surpreendida por um som que vem da janela, esse atiça sua curiosidade e ela caminha em direção ao ruído, junto com ela o espectador ouve o zunir de uma abelha, com a atriz que agora está à janela vemos a abelha com seu ferrão lutando contra o vidro, no entanto, outro acontecimento pode ser visto além da abelha e do vidro. Ao longe vemos Cecília em um diálogo com Robbie, Cecília tira algumas peças de roupa e mergulha em uma fonte, Robbie é visto de costas do ponto de vista de Briony. Quando Cecília sai da fonte com as vestes molhadas e transparentes o rapaz vira o rosto constrangido, a moça é surpreendida pelo grito de Robbie que a alerta sobre os cacos do vaso que estão no chão a sua frente, ela recua e passa pelo rapaz sem pronunciar uma palavra. A jovem Briony, que é irmã de Cecília, observa tudo através da sua janela e sem ouvir o diálogo, começa a formular um pré-conceito sobre Robbie, que é filho de empregados. É importante ressaltar nesta cena a circunstância criada já no roteiro para fazer com que Briony caminhe até a janela, o som a chama, e logo em seguida a falta de som no diálogo entre os dois impossibilita uma apreensão adequada da realidade, levando Briony a construir um julgamento sobre o rapaz, isso somado a outro acontecimento futuro fará com que um grande erro seja cometido.


O diretor Joe Wright nos extras do DVD revela que essa abelha e seu zumbido têm uma função de presságio sobre toda a história, assim como o uso das batidas freqüentes da máquina de escrever.


Outro fator sonoro a ser citado nesta obra é a trilha sonora percussionada pelo som direto acrescido de alguns efeitos. As batidas do guarda-chuva sobre o capô do carro ou o insistente som da máquina de escrever se misturam a trilha sonora e se transformam durante todo o filme, não há separação entre eles.


A cena no café faz uso de uma trilha inserida meta diegeticamente, onde estamos dentro da cabeça do personagem e o som da realidade ou o som direto da cena entra apenas quando Robbie abre a porta, até esse ponto o som direto foi suspenso e ouvimos apenas a trilha. Nesta mesma seqüência temos outro momento em que o diálogo entre os atores foi trabalhado de modo que a velocidade de suas falas revele muito do seu estado psicológico, aonde é possível ouvir com uma clareza impecável o som de uma colher em contato com uma xícara, e salta aos nossos ouvidos o não-dito. Nesta cena podemos ouvir o seu final, pois o som da respiração dos personagens pontua o corte e põe fim a seqüência.


Em um filme sobre contar histórias, o som foi uma ferramenta utilizada de modo a acrescer um valor significativo, ele é um fato que retoma de certo modo as enriquecedoras possibilidades da oralidade de outrora e confere credibilidade à narrativa cinematográfica onde é preciso ver e ouvir para crer.

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